AGRICULTORES DO 5º DISTRITO DE SÃO JOÃO DA BARRA (RJ):
QUEM SOMOS ?
QUEM SOMOS ?
Construiu-se o total desrespeito aos nossos direitos e, para legitimar a arbitrariedade, alegam-se insinuações ou afirmações públicas de que somos produtores em cima de um areal, terra de baixo valor econômico e pouco futuro.
Por este texto, queremos nos apresentar e convidar os leitores à reflexão; à avaliação do que significa o desrespeito aos modos de vida na agricultura familiar.
Nós, agricultores do 5º distrito de São João da Barra, estado do Rio de Janeiro, somos herdeiros e continuadores de uma saga de construção de sabedoria e luta por dignidade. Por séculos aqui instalados, criamos meios de fertilizar o solo, construímos universos de comunicação e redes de comercialização. E tudo isto fundamentado em nossa experiência cotidiana, acumulada pelo respeito ao conhecimento de nossos antepassados. Esta história, só nos orgulha de tornar amplamente reconhecida.
Somos agricultores seculares, mais visíveis após a instalação das usinas de açúcar nos municípios de Campos e São João da Barra, na prática, engenhos modernizados no início do século XX. Essa melhoria técnica incluiu a ampliação da oferta de casas para os trabalhadores industriais e agrícolas, os de escritório e supervisão, e assim a expansão de consumidores. Circulávamos semanalmente entre eles, vendendo nossas mercadorias agrícolas e nossos pequenos animais. Valendo-nos de cavalos e jacás, nesses mercados mais próximos, vendíamos melancia, melão, caju, banana, maxixe, jiló, abacaxi, tomate, pimentão, aves e ovos, leitões, perus e patos. Oferecíamos queijo, farinha, tapioca ou beiju. Convivíamos com nossa clientela compradora, residente nos povoados situados entre as até recentemente áreas das antigas usinas de Mineiros, Santo Amaro, São José, Barcelos, Poço Gordo e Cambaíba, muitas delas situadas na Baixada Campista. Freqüentávamos as festas de Santo Amaro, dirigindo-nos com antecedência e acampando nas centenárias quixabeiras que circundam a praça do povoado. Nessa ocasião, batizávamos nossos filhos. Integrávamo-nos assim ao mundo das usinas e ao sistema religioso praticado por liderança dos padres beneditinos. Do Mosteiro de São Bento, muitos de nossos antepassados obtiveram terras sob contrato de aforamento, antiga modalidade de acesso a terra por trabalhadores e lavradores. E posteriormente, os foreiros puderam se tornar proprietários pela remissão do foro, tal como estimulado pelo Governo Getúlio Vargas durante o Estado Novo.
Veranistas das praias de Atafona, Grussaí e Farol de São Tomé são testemunhos de nossa presença, circulando a cavalo e com jacás repletos de produtos como melancia, caju, melão, abóbora, tomate, pimentão, ingá, além de aves e ovos. Deslocávamo-nos pelas beiras das praias e lá chegávamos. Entre as casas, a maioria delas desprovidas de cercas, com nossa voz, anunciávamos os produtos. E muitas donas de casa já nos conheciam, até mesmo solicitando com antecedência os produtos que desejavam. Aos domingos, aproveitávamos a chegada dos caminhões de piquenique, para ampliarmos a oferta das frutas. Fazíamos assim parte do cenário ou do universo de reencontro anual dos veranistas e da população que construiu uma civilização dotada de histórias próprias na Baixada Campista e seu entorno.
No período de moagem, nossos jovens seguiam para o corte de cana e os mais adultos prestavam serviços de transporte dessa matéria-prima em carros de boi e cambonas. Éramos exímios carreiros e prestávamos serviço aos fazendeiros fornecedores de cana, embarcando o produto nas espalhadas balanças que se situavam ao final de cada ramal de linha férrea, assim instaladas para coletar a matéria-prima. E muitos de nós também plantávamos cana e vendíamos para as usinas.
Conquistamos mercados à distância para encaminharmos nossos produtos, nessa modalidade, mediante apoio dos embarcadores, tradicionais intermediários na comercialização. Eles agregavam as pequenas quantidades de produtos e os transportavam por trem, por vagões próprios que a Estrada de Ferro Leopoldina assegurava, acoplando-os aos vagões de passageiros. As estações de trem possuíam armazéns onde podíamos acumular as caixas de ovos, engradados de aves, porcos, patos e perus. Por esse meio de transporte, também encaminhávamos enormes volumes de esteiras, fabricadas por mulheres e jovens, aproveitando os recursos em tabuas que nos ofereciam os pântanos e os brejos. Valemo-nos desse apoio à comercialização durante todo o tempo em que funcionou a Estrada de Ferro Leopoldina: das primeiras até a década de 60 do século passado, quando o serviço foi sendo interrompido. Colaborávamos assim no abastecimento de produtos alimentícios para a população de Campos, Rio de Janeiro, Niterói e São Gonçalo, com base no sistema de cadeia de comercialização do qual o embarcador fazia parte e acionava.
Nossos antepassados abriram com seus próprios recursos, as estradas que precisávamos para escoar a produção. Sobre os caminhos no areal onde trilhavam com os cavalos e charretes, colocavam galhos de árvores para que os caminhões e charretes se deslocassem. Por essas estradas, por nós mesmos improvisadas, mas também com a presença mais freqüente dos caminhões, muitas famílias da Baixada Campista organizavam piquenique na Praia do Açu. Testemunhavam e se beneficiavam de nosso trabalho coletivo e de nossa construção do bem público. E assim, aos poucos, acompanhamos o progresso chegado aos municípios citados, especialmente pela construção da estrada de rodagem que liga Campos a Niterói/Rio de Janeiro, no governo de Amaral Peixoto. Para essas praças de mercado, agora podendo nos valer ainda mais de caminhões, passamos a encaminhar melão e abacaxis, frutos tão reconhecidos pela qualidade, porque colhidos maduros, mas também mamão, melancia, farinha, tapioca, beiju. Tornamo-nos grandes produtores de abacaxi, volume só diminuído quando enfrentamos pragas que diminuíam a qualidade do produto. Não nos abatemos, ampliamos a oferta de outras mercadorias, como melão, mamão, maxixe, quiabo. E valorizamos praças de mercado mais próximas, como Cabo Frio, Rio das Ostras e Macaé. Ou Bom Jesus, Itaperuna e Miracema. Embalados pela abertura de inúmeras casas de suco, comércio incrementado a partir da década de 1970, fizemos conhecer o sabor de nossos melões e cajus, até hoje apreciados para sucos e sorvetes. Às atividades agropecuárias dos sítios, pudemos integrar nossos filhos para condução de caminhões ou pelo exercício da mediação no processo de comercialização. Esses fatores permitiram consolidar nossa condição de agricultor familiar, quando tantos outros filhos de produtores de cana foram obrigados a migrar.
Na década de 1970, também acompanhamos o crescimento populacional nas praias de Campos e São João da Barra. Anteriormente, já circulávamos por elas, montados em nossos cavalos e com o uso de jacás. Cruzamos assim o que chamamos colmo do mar e abastecemos os veranistas com especialidades da região, como caju e ingá, além dos tradicionais abacaxis, melões, melancias, etc. Antes de cultivarmos a melancia paulista, vendíamos a melancia de cultura local, que recebia diversos apelidos associados à cor e textura, como a melancia jibóia. Ainda com as estradas muito precárias, compramos charretes e aumentamos a produção, tudo isso acompanhando o crescimento populacional dos veranistas.
Essa integração a novos mercados, pela expansão da economia mercantil, permitiu que nos afiliássemos a outros circuitos de compra de produtos, como insumos, inclusive novas sementes, mais produtivas e resistentes a pragas. Todos que passaram por nossos sítios nesse longo período de tempo que sucede à década de 1970, puderam ver como melhoramos nossas casas, compramos pequenos carros-passeios e fomos conquistando diversos serviços públicos.
Esses serviços foram ainda ampliados pela nossa inserção aos recursos abertos pelo PRONAF, criado em 1996, contexto nacional e internacional de valorização da agricultura familiar. Constituímos associações de produtores, como as do Açu e Água Preta, vinculamo-nos à UNACOOP, União de Associações e Cooperativas Agrícolas no estado do Rio de Janeiro, e passamos a circular nossos produtos em especial Pavilhão da CEASA, no Rio de Janeiro.
Assim animados, nossas filhas e esposas continuaram a fabricar esteiras, mas também passaram a beneficiar produtos como goiaba e caju, pela elaboração de doces e castanhas, a ampliar o artesanato pela confecção de bordados e crochês. Constituímos assim unidades produtivas em que todos os membros da família estavam e estão ocupados. Nossos filhos, após a freqüência à escola, podem observar o nosso exemplo de trabalho e se socializar no exercício das atividades, assegurando a reprodução longa, por herança da terra e dos benefícios que atribuímos à natureza e pelo respeito aos valores com os quais os educamos.
Nos últimos anos, valendo-nos da contribuição da Prefeitura Municipal de Campos, que tem destinado recursos para valorização da agricultura familiar e para tornar viável a comercialização de produtos agropecuários na Feira da Roça, somos ali reconhecidos pela nossa regular freqüência, pelos nossos produtos e nossa gentileza.
Dentre esses fragmentos de memória coletiva, mas ainda sintetizando, queremos destacar outra faceta de nosso processo de construção social como agricultores.
É sabido que muitas, mas nem todas as áreas, pois existe boa parte de terra preta, solo bem fértil, em nossa propriedade são formadas por enormes areais. Mas desenvolvemos tecnologias próprias para torná-las férteis. Antes de tudo, com a nossa presença, com os dejetos que sedimentamos durante diversos séculos de vida humana, animal e vegetal. Agregamos então outros elementos conformadores dos atuais solos. Mas para dar conta da produção e da expansão da atividade mercantil, de longuíssima data estabelecemos um circuito de trocas com os produtores de cana da Baixada Campista. Eles criam gados em cercados, complementando a produção de cana. Durante a safra, alimentam esse gado com palhas de cana. Todos esses restos compõem o fundo dos cercados. Dirigimo-nos a eles para comprar essa massa orgânica. Instituímos assim a reprodução de atividades complementares entre nós agricultores e os fornecedores de cana. Abrimos covas no areal e sucessivamente preenchemos com aquela massa, de onde então conseguimos extrair especialmente os abacaxis, cocos e mamões. Plantamos nossos coqueiros em linhas. Nas entrelinhas, aproveitando-nos das sombras das folhas, adubamos e plantamos tomate, maxixe, melancia, pimentão, alface e cheiro verde. Não usamos adubos químicos. Oferecemos assim esses produtos em condições saudáveis.
Construímos esses saberes em nossas conversas cotidianas e transmitimos esses conhecimentos entre nós mesmos e por trocas que nossos companheiros estabelecem nas praças de mercado. Somos assim portadores de história longa, inovadores e empreendedores de rica memória coletiva, de tradição e de orgulho de pertencermos a comunidades que se integram mais ou menos à vida em todo estado do Rio de Janeiro.
Pela solidariedade dos homens de bem, respeitosos da vida e dos ganhos sem violência aos bens alheios, contamos com sua união e apoio, contamos com sua indignação pública a tão perversa arbitrariedade.
ASPRIN
Associação dos Agricultores do 5º Distrito de São João da Barra
Apoio: UFF/CNPQ-Grupo de Pesquisa Transmissão de Patrimônios Culturais