Não será mais novidade, nem causará tanto espanto se daqui a uns anos nos depararmos com um estudo desanimador acerca do destino dos pescadores de São João da Barra. Nele haverá uma descrição mais ou menos assim: “Engolidos pela urbanização, sem migrar, suas vidas viradas de cabeça para baixo, mesmo permanecendo no lugar onde nasceram. Depois que suas casas foram isoladas do mar por uma nova estrada, seus locais de pesca poluídos pelos resíduos urbanos, e as terras vizinhas desmatadas para construir prédios de apartamentos, eles não tiveram escolha senão mandar as filhas para a exploração das fábricas da região. Foi a destruição não só do meio de vida de pessoas que sempre viveram em simbiose com o mar, mas também da psique e do espírito dos pescadores”.
Na verdade, esse relato é sobre o destino dos pescadores de Penang, na Malásia, após terem sido engolidos pela promessa de desenvolvimento. Está no ótimo livro “Planeta Favela”, do americano Mike Davis. O que nele se discute é a nova ordem urbana, na qual se verifica uma colisão entre o rural e o urbano. A desregulamentação agrícola continua provocando o êxodo da mão-de-obra rural excedente para as favelas urbanas, mas as cidades deixaram de ser máquinas de emprego. Cada vez mais, a industrialização está deixando os grandes centros para se diluir em regiões antes consideradas interioranas. E isso tem produzido, por um lado, a sensação de desenvolvimento que a urbanização, muito competentemente, provoca e, por outro, a reprodução da pobreza que ela mesma, a urbanização, é ainda mais eficiente em promover.
Eu não quero ser uma ecochata. Não sou contra a “ordem” e o “progresso”, ainda que suas promessas mais positivistas em nada me seduzam. Mas vejo com olhos desconfiados a exaltação do Porto do Açu pelos governos locais e pela população nativa como sinal de que a região finalmente vai se alavancar. Ora, cara pálida, desenvolvimento para quem? O programa de responsabilidade socioambiental da LLX em relação à pesca anuncia ações que fortalecerão o setor, tais como investir na infraestrutura e dar suporte às atividades pesqueiras para diminuir os custos da produção e agregar valor ao produto. Uma pergunta: haverá peixes para pescar depois que o porto estiver funcionando? Outros programas incluem a oferta de laboratórios de informática, consultório odontológico, reformas da colônia e financiamento das festas tradicionais da comunidade. Uma dúvida: essas não seriam obrigações do Estado?
Tudo bem. Vão dizer que o desenvolvimento não pode parar em função de uma minoria e que os pescadores podem muito bem se arranjar na construção civil. Aliás, é isso mesmo que eles têm feito já que a LLX, em parceria com o SENAI e com a Prefeitura, andaram “qualificando” profissionais em cursos de soldador, pedreiro, carpinteiro, mecânico, operador de empilhadeira, técnico hidráulico, almoxarife, armador de ferro e assistente administrativo. Uma questão: depois que o porto estiver pronto eles continuarão empregados? Esses questionamentos que faço aqui não se dirigem apenas à situação dos pescadores. Preocupo-me com o inchaço populacional desordenado na região. Um empreendimento como esse atrai muita gente em busca de trabalho. Nada contra, mas quando elas não são incorporadas ou o são em subempregos e fora da legalidade inicia-se um processo de favelização como ocorreu em Macaé e adjacências. Aí começam os graves problemas: educação, saúde pública, violência etc. As favelas são os campos de concentração contemporâneos.
Vejam bem. Não acho que o Açu necessariamente deveria permanecer parado no tempo. Nem que São João da Barra deveria continuar fechando o comércio na hora do almoço. Só não gosto dessa projeção acrítica do que significa o desenvolvimento e dessa ilusão de sustentabilidade e responsabilidade social. Como assim ensinar Mandarim pra quem mal fala o Português? No livro, Davis faz a seguinte premonição: “As cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração”. Desenvolvimento sem distribuição de renda não é desenvolvimento. É regressão. Por isso, rezo pra que no Porto não desembarquem piratas.